Et Michele dans Mon Coeur
Hoje, na noite de 8 de outubro de 2012, faz quatro anos que eu e a Michele começamos a namorar lá no último andar daquela comedeira do SESC Avenida Paulista .Nos casamos no ano passado. Em homenagem a ela, vou postar esse conto real, autobiográfico, que aconteceu com a gente em junho de 2010 quando nos apresentamos no Coral da Aliança Francesa.
"FOTOGRAFIA"
Pensei que eu não
tivesse mais idade para isso.
Era o Festival de Música Francesa no
teatro da Aliança. Naquela noite de sexta-feira de junho de 2010, seria também
a estréia do recém criado coral da Aliança. Nele, eu debutei ao lado de
Michele.
No prévio aquecimento vocal, o meu sangue
no coração na temperatura que a água ferve nas grandes altitudes, a respiração
precisou ficar mais acelerada para compensar o ar rarefeito aqui nas alturas, o
suor das mãos eram as lágrimas que não conseguiam escorrer pelo canto esquerdo
da órbita, além de uma espera sem fim que é a forma como um filho muçulmano
aguarda pela visita do papai Noel na noite de Natal quando se é criado no maior
país católico do mundo.
A exibição era a esperança reeditada de
um menino em cuja escola deixou de existir o coral quando ele completou a idade
mínima para ser admitido. Na infância, tinha apenas seis ou sete anos e via
seus contemporâneos de dez anos cantando melodias que lhe ameaçavam desvelar
novos mundos. E talvez novos monstros também. A irmã de onze anos dizia que
nunca tinha sido aceita no grupo de cantores do colégio, porque tinha a voz
rouca, e eu meramente acatava essa explicação. Eu era pequeno demais para
entender a justificativa. Menor ainda para duvidar dela. Meramente aceitei com
a resignação dos anjos falhados a história que me era narrada.
Ao lado da regente, dos meus colegas e da
Michele, saímos da sala de treinamento no segundo andar e descemos as escadas
que se espichavam para dar a dimensão de Mont Blanc. Separei-me da Michele, já
que as mulheres iriam entrar pelo lado esquerdo do auditório, e nós, pelo
direito. Ao pisar no tapete vermelho dessa ópera de Paris, senti os meus pulsos
bailarem confusamente nos meus punhos. Faz uma vida que eu sequer sentia os
meus pulsos. A sola direita do meu pé formigou, enquanto a esquerda se recusava
a formigar e era ela quem sustentava todo o resto do meu corpo agora. Sempre
preferi ser sustentado por qualquer coisa de direita. Político de direita,
ideologia de direita, perfil direito de Deus. Agora é a minha mão direita quem
escreve esse texto. Não andava mais em linha reta. Os espectadores seriam
capazes de jurar que eu tinha esvaziado aquelas taças de chamapagne na
antessala do teatro. Juro que cheguei cedo ao prédio e elas já estavam vazias,
aguardando o término da apresentação para aí então receberem o líquido
borbulhante que lembraria aos convidados que o ser humano foi feito com quatro
doses de champagne a menos.
Dei passagem aos demais colegas para adiar
ainda mais a expectativa. Entrei sur scène como uma criança que vai enfim em
busca de seu retardado presente. Lá de cima, o teatro se transformava num
templo onde os querubins de gesso emolduravam seus rostos para se concentrarem
na música, e a platéia de rostos humanos era pura nostalgia.
Eu era o legítimo menino procurando pela
mãe na platéia. Ela não pôde estar aqui essa noite. A mãe já tão borrada não
apenas pelas nossas geografias, mas também pela distância no tempo. Os senhores
da direita eram meus contemporâneos da escola, disfarçados de trinta anos mais
envelhecidos do que eu. Se o avô de Jean Paul Sartre se orgulhava de que o
pequeno Poulou se balançava ao som de uma colher mexendo numa xícara,
anunciando “ele tem ouvido”, eu pelo contrário nasci sem ouvido. Eu era o mais
desafinado no coro. E o mais feliz também.
Já que Assis Valente foi capaz de fazer
uma francesa subir o morro e adentrar num terreiro de macumba na canção “Tem
Francesa no Morro”, eu por outro lado me inaugurava através da dança dos lábios
e da excitação dos pulmões, respirando a cultura francesa que tanto fertilizou
o imaginário do meu povo, me incitando a estudar francês sozinho em casa aos
doze anos. Antigamente, toda família síria ou libanesa tinha um piano para
enfeitar a entrada da casa, mesmo sem nunca terem tocado. Era chique parecer
francês naquela época.
Cantamos três cânones, além de uma música
do Haiti em francês crioulo. Como pôde uma nação tão abalada como essa criar
uma música tão sublime assim? A criação humana sempre negligenciou a miséria
social. Por alguns minutos remamos em direção à praia natal desses companheiros
latinos, tomando emprestados o barqueiro e a audácia deles. Os haitianos me
asseguraram de que eu não me afogaria. Caso esquecesse a letra, bastaria fazer
mímica ou careta.
A última vez em que eu tinha estado num
palco foi há oito anos quando meu pai subiu para me entregar o diploma de
Medicina. Todo mundo tinha que subir mais vezes num palco para saber como é
isso. Cinco anos após esse evento onde meu pai afirmou ter ali cumprido a sua
missão prá valer, ele decidiu voar para sempre sobre os tetos de Damasco e as
cúpulas douradas de suas mesquitas (só se descobre que os tetos de Damasco são
coloridos quando se voa a uma distância inatingível pela experiência terrena).
Foi ele quem imortalizou em mim uma de suas lições: “Os médicos árabes diziam
que a música é o melhor remédio prá alma”.
Eu me distraía o tempo todo ao encarar a
Michele. “ Je ferais mieux choisir mon
vocabulaire Pour te plaire Dans la langue de Molière.” (1) E
dizer que a Michele também tem um nome francês. Parece até que foi tudo de
propósito para que as coisas se encaixassem aqui, exceto que a mãe dela quis
poupar em um “L”, não permitindo que fosse Michelle. Se a francesa desesperada
de Assis Valente subiu o morro e foi parar num terreiro, será que a França
respondeu com uma Michele com um “L” só, morena e sensual, que canta em francês
crioulo?
E o que dizer então da Daniela, a regente?
Grávida de seis meses, ela tocava aquele coral numa empolgação, num fôlego,
numa completude. Quanta vida numa mulher tão coquette que carregava um troféu na barriga!!
Os querubins aplaudiram sem parar.
Confesso que vi até judeus e árabes de mãos dadas na platéia, desfazendo a cena
para bater palmas. Os rostos esboçados das mães dos meus contemporâneos
cumprimentavam a minha mãe agora ressuscitada atrás da cochia. Teria ela se
escondido para não constranger o seu guri?
Maurice Nahory, diretor geral da Aliança
Francesa, nos parabenizou, mas disse que precisávamos ensaiar mais. Os
franceses são tão educados.
Era hora de ser devolvido para o mundo lá
fora que me interrogava por onde eu tinha estado por alguns minutos.
- Senhor juiz, eu juro que só estava no
Coral da Aliança.
Receei ser cada vez mais parecido com o
meu pai que só pensava em trabalho. Um homem que vivia em dólar. Esse
repertório estreito não era culpa dele. A sociedade do espetáculo, toda
inundada de coca-cola e carros importados, nos exige cada vez mais o
aniquilamento daquilo que é tão genuíno dentro de nós.
Alguma transformação se processou em mim
nessa noite. Mas não vou conseguir contar para vocês qual é. Embora eu seja
desafinado e médico tal como Molière, não consigo ser bom escritor como ele. Da
mesma forma que a minha voz não se entende com as notas do piano, a minha
escrita ainda não alcança a força daquilo que sinto e que é muito maior do que
eu. Uma pena que um dia a gente morre.
Ziyad Abdel Hadi junho/2010
(1) trecho da música For me...formidable de Charles Aznavour
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Zihad, vc acha mesmo que os franceses são bem educados?????????????hehehhhe, do resto, parfait
ResponderExcluirHeddy... nesse contexto o francês foi bem educado.kkkkkk
ExcluirParabéns mais uma vez, texto maravilhoso. Tenho orgulho de te-lo como amigo.
ResponderExcluirObrigado, Gabriela!! Eu também fico muito contente em ter amigos como você e o monsieur Ike.
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